terça-feira, 19 de janeiro de 2010

corridas no sahara

Corrida para camelos



Ultramaratona no Deserto do Saara desafia os limites do homem. Veja por quê

No mundo das corridas de longa distância – as chamadas ultramaratonas – existem dois tipos de provas: as multidays e as nonstop. Ambas provas surpreendentes, seja pela dificuldade, pela beleza ou pelo desafio e ineditismo. Uma das mais difíceis e surpreendentes no estilo multiday é a Sahara Race, competição que percorre 250km na porção egípcia do maior deserto subtropical do mundo: o Saara.
A prova precisa ser feita a pé, em seis etapas, durante sete dias. Cada atleta leva tudo o que precisar durante a prova, dentro de sua mochila. Por isso mesmo, eu, marinheiro de primeira viagem nesse tipo de aventura, comecei a Sahara Race carregando 17,7kg na minha mochila, distribuídos em comida desidratada, suplementos, roupas e medicamentos, além dos três litros de água obrigatórios ao largar em cada etapa.
Eram 80 competidores de 16 países na primeira das seis etapas da prova descendo uma duna com 20 metros de altura. Bom começo para um iniciante em corridas na areia. Nos primeiros quilômetros notei que havia mais areia dentro do meu tênis do que em todo o Saara. Sensação nada agradável.
Deserto Branco
A prova foi realizada em novembro, ou seja, era inverno no Saara. A temperatura chegava a 44 graus celsius durante o dia e a sete graus negativos à noite. No verão, a máxima beira os 60 graus.
O calor e a fricção da areia no pé  levam, invariavelmente, para o reino das bolhas, e isso logo no primeiro dia. A RacingThe Planet, empresa organizadora do evento, nos levou para correr através do Deserto Branco, como é conhecida a região. Uma paisagem cortada por belos cânions e pequenas formações de calcário que às vezes nos surpreediam por sua semelhança com alguns animais.
Foram 35km que só consegui superar após oito horas. É incrível como correr na areia drena as energias.
Cheguei esgotado ao acampamento 2. Felizmente, em cada acampamento havia tendas para os competidores dormirem, água quente pra fazermos uma refeição e uma equipe médica, que cuidava, principalmente, dos pés dos corredores.
Diferentemente de corridas nonstop, em que tudo o que o atleta quer é chegar ao final, as competições multiday têm como característica sugar lentamente as forças dos competidores, tanto as  mentais quanto as físicas.
Não há equipe de apoio, carro de suporte, nem qualquer outra regalia. Por isso mesmo, os 35 quilômetros do primeiro dia estavam reverberando em cada músculo e articulação do meu corpo, assim como as bolhas nos pés, que já estavam enormes.
Após dormir por nove horas seguidas, acordei no segundo dia começando a entender quão diferente era aquela prova de qualquer outra.

O começo do fim
Às 6h30 tivemos uma rápida explicação da tortura que nos aguardava à frente: 41,8km de areia fofa misturada com calcário, pequenas dunas e diversas formações rochosas, tudo isso dividido em quatro postos de controle (PC).
Começar uma maratona cheio de bolhas nos pés e com o corpo todo doendo foi uma experiência única. Ao chegar ao segundo PC, fui atendido pela equipe médica da prova. Eles tiraram meu tênis e começaram a drenar minhas bolhas. Um líquido  amarelado com sangue começou a sair de sete delas que eu tinha só no pé direito. Vi que aquilo não estava certo! Desisti de furar as bolhas do pé esquerdo e voltei à corrida. Não durei muito.
Por volta do quilômetro 25 eu estava praticamente desmaiando de exaustão. A equipe de apoio do PC2 veio ao meu encontro e me levou de jipe para o acampamento. Faltavam menos de 15km para eu terminar aquela etapa, mas já havia sido vencido pelo deserto. Minha falta de experiência em provas multiday e com o deserto  tiraram-me dessa etapa.
A boa notícia foi que poderia continuar competindo, porém, sem a chance de trazer a sonhada medalha.
Rumo ao Deseto Negro
Na terceira etapa eu estava bem mais relaxado, talvez porque a pressão de concluir a prova a qualquer custo tinha acabado. Sorte a minha, porque enfrentamos 37,5km de dunas enormes e vento contrário.
Imaginei que a etapa seria a pior de todas. Subir dunas gigantes, carregar uma mochila pesada, com três litros de água, é tarefa para beduíno.
Cheguei ao final do terceiro dia  realizado, embora meus pés estivessem em estado lastimável. Completei a etapa em sete horas.
No quarto dia de Sahara Race havíamos saído do Deserto Branco e entrado no Deserto Negro. Eles são chamados assim pois são praticamente idênticos, porém um é coberto de calcário branco, enquanto o outro é coberto por fragmentos de rocha negra.
Cobrimos 37 quilômetros que pareciam não acabar, porém com uma grata surpresa no quilômetro 26, um Oásis cravado no meio do deserto, com água gelada vinda de um poço (não potável).
Praticamente tomei um banho de água fria no meio do deserto e segui em frente para fechar a quarta etapa em 7h15min.
O mais difícil foi beber a água morna que eu carregava comigo. Por mais que você tente, é impossível conseguir que a água fique fresca nessa corrida. O jeito é botar um bom gole na boca, e ir levando a água de um lado para o outro, na esperança de ela ficar menos morna, e depois engolir.
Corridas multiday necessitam que você mude sua visão sobre necessidade e sobrevivência. Luxos como refrigerante gelado, banho e  banheiro particular não fazem parte deste tipo de maratonas.
Durante uma semana, você é privado de tudo o que é supérfluo à corrida e, no final, percebe o quanto é cercado de coisas de que não precisa para sobreviver.
Na base dos remédios
O quinto dia chegou e com ele a mais temida etapa de todas: 93 quilômetros cruzando um platô, saindo do deserto negro.
No início do dia, eu não sabia ao certo se seria capaz de completar esta etapa. Meu saldo era: bolhas pelo pé inteiro e duas unhas a menos. Para conseguir andar, iniciei a prova com 800mg de ibuprofeno, mais conhecido pelos atletas como pain killer (mata dor, em português).
Assim, um pouco anestesiado, iniciei a  longa jornada de quase 23 horas.
A partir do segundo posto de controle enfrentamos ventos de até 80km/h, que traziam consigo pedregulhos e areia. O vento era tão forte que a areia machucava ao se chocar com a pele. Nos últimos 50 quilômetros vi que não havia mais condição de continuar andando, pois, aparentemente, a geografia do lugar não estava ajudando muito.
Decidi correr a partir dali, pra tentar diminuir o mínimo possível o tempo dessa etapa. Quando terminei o longo dia, mal conseguia acreditar. Depois, como foi difícil pegar no sono, por causa dos mosquitos e do calor que no início da manhã já chegava aos 44º C.
Descansei o resto do dia e tentei poupar ao máximo meus pés em frangalhos para última etapa da Sahara Race: 10 quilômetros de corrida dentro da cidade do Cairo.
Enfim, Cairo
Às 4h fomos acordados, pois um ônibus nos aguardava a poucos metros de nosso acampamento para nos levar de volta ao Cairo, capital do Egito. Foram cinco horas de viagem. Quando chegamos, os organizadores nos disseram que faltavam apenas 10 quilômetros para o final da prova.
A despeito da dor insuportável que eu estava sentindo, um profundo sentimento de realização me dominava. Comecei os últimos 10 quilômetros em um ritmo confortável de 9km/h, tentando aproveitar os instantes finais.
Infelizmente, faltando alguns metros para o final da corrida, eu e um grupo de corredores ficamos perdidos e gastamos mais de 45 minutos para encontrar o caminho correto. Mas tudo isso ficou para trás quando cruzamos a linha de chegada, dentro da região de Giza, com as pirâmides  como pano de fundo, e fomos recebidos como pequenas celebridades.
Uma banda de sopro egípcia recepcionava os atletas. Além da música, havia um “banquete” de pizza com refrigerante.
Terminei a prova em 23 horas, sem completar duas etapas. A  brasileira Mônica Otero fez em 83 horas e o escocês Andrew Murray venceu com 30 h11min.
Por fora, eu estava cinco quilos mais magro, pés macerados e a pele queimada. Por dentro, uma satisfação indescritível e o sentimento de que provas multiday são oportunidades de autoconhecimento, muito mais do que apenas corridas de longa distância divididas em etapas.
Cruzar a pé o Deserto do Saara totalmente sem apoio e somente com as próprias forças foi uma experiência única que sonho repetir quantas vezes for possível.

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